terça-feira, 4 de agosto de 2009

Conto curto

    Tem-se, em observação, uma rua quase deserta senão por um casaco marrom e par de jeans que navega por ela. Mente-se, seguindo o rapaz surge também, de pelugem marrom quase descolorida, quatro patas, três compassadas e uma manca.
    A distância entre os dois diminuía à proporção da desconfiança e, enquanto o homem diluía suas angústias em solvente natural que é o relento de cidade, o cão parecia querer apenas outro ser que lhe acompanhasse por alguns instantes. Talvez fosse fome e frio, por parte do animal, e embriaguez e vazio, por parte do homem. A verdade é que o último não podia sentir-se aliviado. Não que se arrependesse, mas recebia a áspera resposta do nada. Pois bem, era jovem e imortal, haviam os vinhos, o sexo e as melodias, enquanto sua alma era ampla suficiente para sobressair aos erros.
    O chiado dos sapatos furados compunha melancólica harmonia pincelada pelo gelado silvo do vento e este tema guiava a então formada amizade por algumas ruelas de Santa Cruz. Mesmo que efêmera, a parceria era de cumplicidade suficiente para abrandar a solidão das calçadas sujas às três da madrugada.
    Com o cheiro de uma mulher no pensamento, o de outra no braço e o do cachorro ao lado, ele seguia sem pressa na companhia do miserável camarada. Há algo de intrigante nos aromas. Não tão direto quanto uma imagem nem tão temporizados como uma música, o olfato pode ofertar as mais amplas e completas sensações.
Passam-se uns vinte minutos e exatamente três quadras, o necessário para dispersar a amargura e para que as pernas já reclamassem o cansaço. Em despedida, o comparsa se aproximou, cheirou e lambeu-lhe a mão.
    Há meia hora atrás, era a umidade de boca feminina que lhe tocava a pele. Trocou olhos azuis, lascivos e maqueados pelo olhar faminto e pidão de um vira-latas. Nunca a idéia de que 'o tempo passa' lhe parecera tão gratificante.