Tem-se, em observação, uma rua quase deserta senão por um casaco marrom e par de jeans que navega por ela. Mente-se, seguindo o rapaz surge também, de pelugem marrom quase descolorida, quatro patas, três compassadas e uma manca.
A distância entre os dois diminuía à proporção da desconfiança e, enquanto o homem diluía suas angústias em solvente natural que é o relento de cidade, o cão parecia querer apenas outro ser que lhe acompanhasse por alguns instantes. Talvez fosse fome e frio, por parte do animal, e embriaguez e vazio, por parte do homem. A verdade é que o último não podia sentir-se aliviado. Não que se arrependesse, mas recebia a áspera resposta do nada. Pois bem, era jovem e imortal, haviam os vinhos, o sexo e as melodias, enquanto sua alma era ampla suficiente para sobressair aos erros.
O chiado dos sapatos furados compunha melancólica harmonia pincelada pelo gelado silvo do vento e este tema guiava a então formada amizade por algumas ruelas de Santa Cruz. Mesmo que efêmera, a parceria era de cumplicidade suficiente para abrandar a solidão das calçadas sujas às três da madrugada.
Com o cheiro de uma mulher no pensamento, o de outra no braço e o do cachorro ao lado, ele seguia sem pressa na companhia do miserável camarada. Há algo de intrigante nos aromas. Não tão direto quanto uma imagem nem tão temporizados como uma música, o olfato pode ofertar as mais amplas e completas sensações.
Passam-se uns vinte minutos e exatamente três quadras, o necessário para dispersar a amargura e para que as pernas já reclamassem o cansaço. Em despedida, o comparsa se aproximou, cheirou e lambeu-lhe a mão.
Incríveis as metáforas, a sinestesia e a sonoridade dos teus contos. Você é bom pra cachorro. rs
ResponderExcluirÓtimo, Miguel!
Beijo
Caro Miguel, o blog "Trem de Doido" está interessado em publicar o teu "Conto curto".
ResponderExcluirDa uma passada lá e confere, se tu gostar dá um ok.
http://trem-de-doi-do.blogspot.com/