segunda-feira, 24 de maio de 2010

Novavilense



Domingo era dia de jogo do Novavilense.
Despertava às oito com um beijo da esposa, uma lambida do cachorro e a cabeça suada.
Tomava o seu café forte com pão de sal e manteiga, enquanto as crianças (eram duas) davam as últimas espreguiçadas na cama.
Iam à piscina: bóias, bolas, sol, sombras, jornal, suor...
Almoçavam com os pais dela, contavam as últimas façanhas dos filhos na escola, tinham pavê de sobremesa.
Voltava para casa, os pequenos cochilavam, a esposa cochilava e ele mal se continha a esperar as dezesseis horas. Enquanto isso, suava a cabeça.
Quinze e quinze já se punha de vermelho e branco (cores do Novavilense), sacava a primeira garrafa de cerveja do refrigerador e sentava no sofá.
Dez para as desesseis levantava, preparava a panela de pipoca e sacava outra cerveja para refrescar o suor.
Iniciava a partida com as esperanças e sonhos de quem vê o amor de sua vida pela primeira vez. 
Xingava, suava, pulava, resmungava, sentava e suava mais.
Terminava a partida com a raiva e frustração de quem já viu o amor de sua vida por tempo demais.
Sentava na varanda colorida pelos últimos raios do dia. Ouvia os pássaros.

Aconteceu que, neste domingo, uma sequência inédita de pequenos movimentos e observações se sucedeu. Quando levantava a garrafa para levar à boca, parou e segurou-a fixa no ar. Estático, reparava em uma gota que pendia ao fundo, lado de fora da garrafa. Os pássaros murmuravam enquanto a luz do entardecer refratava na gota, que vacilava em seu curto instante de existência. Talvez se passassem dez ou até vinte segundos, mas dentro daquela cabeça suada de domingo não havia progressão temporal, apenas uma imagem em quadro.

E assim como o excesso de sal estraga o feijão e muito cantar compromete a canção, este turbilhão estático de idéias e sentimentos foi demais para a cabeça suada. Enxugou a gota, exugou a testa e tratou de parar de pensar mais do que deveria.
Afinal já se fazia noite, em poucas horas deveria dormir e descansar. Amanhã era segunda-feira. Não era dia do jogo, era dia de trabalho.
Novavilense agora, só semana que vem.



4 comentários:

  1. Miguel,

    De um lado a rotação das horas no seu mais íntimo tempo e pressa. De outro, a perspectiva poétima nas sua beleza de re-inventar o tempo e oferecer novos pratos para os olhos.

    De um lado as funções repetitivas e sem graças. No seu inverso, de ponta - cabeça, a poesia,

    Abraços, guri! Boa semana pra tu!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. É sempre bom quando leio algo que veio da minha terra, de alguém que está por aí, um pouco mais perto de mim e que descreve com tanta precisão de emoções um momento curto, mas cheio de significados, ah, essas pequenas coisas que me encantam. Vim parar aqui por indicação da querida Pâmela e te deixo meu carinho em verso.

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  4. E a gota a cair, sempre a cair...

    Espetacular, rapaz.

    Beijo e obrigada pelo carinho de sempre com as minhas letras. Ainda estou sem computador, mas tenho fé. rsrsrs

    Beijomeu

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